De volta para o útero
14/02/2013
"De volta para o útero
Dou sequência hoje ao diálogo que venho travando com meu colega João Pereira Coutinho acerca das barrigas de aluguel e os limites das éticas consequencialistas e deontológicas. Seu ponto de partida era kantiano. Equiparava o aluguel da barriga à aquisição de uma bolsa Louis Vuitton e concluía que isso violava o imperativo categórico em sua segunda formulação, a que nos impede de tratar outros seres humanos apenas como um meio para obter alguma coisa e não também como um fim em si mesmo. Reforçava seu argumento lembrando que as indianas que se dispõem a gestar um filho que não será seu não o fazem como exercício de sua autonomia (outro conceito kantiano), mas por pressões econômicas. Em seguida, introduzi a noção principal das éticas consequencialistas, segundo as quais é preciso levar em conta os resultados da ação para julgá-la boa ou ruim, e afirmei que, no caso das barrigas de aluguel, as duas partes eram beneficiadas pelo acordo. A mãe ocidental conseguia seu tão almejado filho e a indiana saía substancialmente mais rica. Como, a meu ver, o trato não prejudicava ninguém --não atribuí muita importância ao potencial traumático de a criança um dia descobrir que foi "comprada" como uma Louis Vuitton-, concluí que o acerto era legítimo e não cabia ao Estado interferir.
(Faço um pequeno parêntese para pró-Kant. Compradas pelo valor de face, éticas consequencialistas apresentam problemas tão graves quanto o imperativo categórico em estado bruto.
Se só o que importa é produzir o maior bem para a maioria das pessoas, o médico pode matar o paciente saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pessoas que necessitavam de transplante e o Estado está autorizado a torturar familiares do terrorista no intuito de demovê-lo de seus projetos funestos). É uma posição respeitável, mas não a compro por razões essencialmente pragmáticas (ou, deveria dizer, consequencialistas). Como eu havia colocado na coluna de sábado, se podemos levantar objeções morais ao fato de a indiana fazer um leasing uterino pelo período de nove meses, teríamos de protestar com ainda mais ênfase contra o fato de trabalhadores alugarem seus músculos por 12 horas diárias ao longo de toda a vida.
Coutinho concordou que também aí ocorre um crime. Mas por que devemos nos ater às condições indianas? O trabalhador ocidental que cumpre jornadas mais humanas de oito ou mesmo seis horas por acaso deixou de ser explorado? Se aceitarmos esse raciocínio, teremos de, como Marx, condenar toda espécie de trabalho assalariado com a exceção, talvez, de algumas poucas atividades criativas, que proporcionam não apenas sustento como também satisfação para seu autor.
Não me oponho a qualificar como exploração, crime ou corveia o trabalho, seja ele assalariado, autônomo ou de qualquer outro tipo. Apenas transponho a discussão para um contexto mais, digamos, ecológico e noto que sofrer para conseguir obter as calorias necessárias à manutenção da vida é uma constante no reino animal. Não vejo por que deveria ser diferente com o homem, pelo menos não até que desenvolvamos a tecnologia necessária para aposentar o trabalho, um cenário previsto por Marx.
Divagações à parte, o equilíbrio a que Coutinho alude talvez seja uma impossibilidade. É claro que há situações de desigualdade mais ou menos gritante, mas com que critérios traçaríamos uma fronteira entre desequilíbrios aceitáveis e inaceitáveis? Parece-me mais prático simplesmente reconhecer que o mundo encerra muitas injustiças, sem limitar o direito das mulheres pobres indianas de tentar melhorar de vida por meios que, no meu entender, não atrapalham ninguém.
E isso nos leva à segunda questão, que é a de estabelecer se as crianças são ou não prejudicadas ao dar-se conta de que foram adquiridas como uma mercadoria, para seguir na terminologia marxista. Acho que o problema aqui é mais empírico do que teórico. É claro que ainda não temos um número grande o bastante de pessoas nascidas de barriga de aluguel com suficiente história de vida para tirar conclusões, mas eu ficaria surpreso se a eventual descoberta causasse um grande trauma, ou mesmo um médio. Não creio que estejamos diante de uma situação muito diferente da das crianças que se descobrem adotadas. Na verdade, essa conversa lembra muito o que se dizia sobre as terríveis crises de identidade que inexoravelmente afetariam os bebês de proveta quando tivessem consciência de sua condição. É claro que nada disso ocorreu, como se verificou depois que eles cresceram e se tornaram indivíduos normais.
Às vezes as pessoas se esquecem de que o homem, crianças inclusive, é um bicho resiliente. A menos que você submeta seu filho a maus-tratos sistemáticos e o prive de das condições mínimas de nutrição e educação, o mais provável é que ele se saia bem, ou, para ser mais preciso, que consiga realizar seu potencial genético.
Para Coutinho, contudo, nem é o caso de discutir se o trauma é grande ou pequeno ou mesmo real. Basta que haja a possibilidade do dano para acionar o princípio da cautela e proscrever a barriga de aluguel. Não gosto desse tipo de raciocínio. Não chego a afirmar que é proibido proibir, mas creio que, para vetar condutas, precisamos de mais do que suspeitas abstratas; necessitamos de indícios tão sólidos quanto as ciências sociais são capazes de produzir. Se não for assim, teríamos de adotar como válida a argumentação de conservadores religiosos de que a legalização do divórcio ou o reconhecimento do casamento gay deveriam ser vetados, já que, pelo menos no plano abstrato, constituem um risco à família. Precisamos de motivos mais sólidos antes de acionar a mão pesada do Estado, em especial a do direito penal, utilizado por muitos países para bloquear o aluguel de úteros.
Finalizo reiterando o prazer que é polemizar com um sujeito culto e cordato como Coutinho. Mesmo que um não consiga convencer o outro nem o leitor da justeza de suas posições, o exercício serve para que refinemos nossas próprias opiniões, o que não é pouco."
Fonte: Cofen.com
Imagem: Biscatesocialclub.com.br