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De peito aberto

05/05/2013

"De peito aberto

Autor(es): Por Flávia Duarte
Correio Braziliense - 05/05/2013

Conheça a história de quatro mulheres que enfrentaram "e venceram " o câncer de mama. Passaram pela dor de se verem mutiladas e se submeteram
a uma das fases mais reconfortantes desse difícil processo: a reconstrução mamária. Algumas esperaram anos pela cirurgia, que recentemente passou a ser, por lei, um direito imediato


Enfrentar um diagnóstico de câncer de mama exige da paciente a superação do medo, da dor e da vergonha. O medo de faltar para a família; a dor de passar por cirurgias e de sentir os efeitos colaterais das drogas que curam, mas deixam fortes rastros; além da vergonha de ver o corpo diferente diante do espelho, dos próprios olhos e dos olhos do outro. Muitas, para se livrarem definitivamente do tumor, veem-se obrigadas a extirpar uma parte de si mesmas. Em muito casos, a mutilação é a chance de cura que não deixa escolhas, o que aumenta o estigma da doença e o pavor em tratá-la.

No último 25 de abril, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.802, que determina: as mulheres vítimas de câncer de mama, que passaram por uma mastectomia, deverão ser submetidas a uma cirurgia reparadora imediata. Na teoria, elas terão a mama reconstruída assim que a doente for retirada. Na prática, porém, é preciso analisar clinicamente cada caso. Há mulheres que, por limitações físicas e por regras do tratamento, terão de fazer a cirurgia reparadora em outro momento.
Outro ponto a se discutir é se os hospitais públicos no Brasil estão preparados para atender à demanda de mulheres candidatas à reconstrução. A se considerar a fila de hoje, que pode durar até cinco anos, para que a paciente tenha acesso a uma plástica que lhe devolva as formas e a vaidade, há muito o que fazer até essa nova lei ser cumprida rigorosamente. De acordo com os dados do Sistema Único de Saúde (SUS), entre 2008 e 2012, cerca de 68 mil mulheres tiveram a mama retirada. Nesse mesmo período, porém, menos de 10% conseguiram fazer a cirurgia reparadora.

A torcida é que a medida mude o curso do longo e doloroso caminho percorrido por milhares de mulheres que recebem anualmente o diagnóstico de câncer de mama. “Os médicos que atendem pelo serviço público de saúde estão receosos quanto a essa lei. Nem todas a pacientes terão condições de reconstruir a mama imediatamente. Também temos que analisar se temos equipe e material para cumprir a lei, considerando que ainda existe uma enorme espera para fazer a cirurgia de retirada do câncer, de dois a três meses. Imagina se esse tempo ainda for usado para a reconstrução?”, pondera Maira Caleffi, presidente da Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama). A entidade apoia a iniciativa, mas avalia que será preciso, antes de mais nada, ampliar a equipe de médicos, melhorar as condições de diagnóstico, disponibilizar centros cirúrgicos e estrutura para que essas pacientes usufruam do tratamento integral do câncer de mama.

Segundo dados do Ministério da Saúde, no ano passado, o SUS fez 1.394 cirurgias de reconstrução mamária pós-mastectomia, com implante de prótese de silicone, ao custo de R$ 1,1 milhão. O país conta com 180 serviços credenciados e habilitados para realizar tal procedimento. Desses, 11 foram incluídos na lista nos últimos dois anos, o que indica o interesse em ampliar os serviços e atender a demanda.

Em Brasília, nos últimos dois anos, a fila para ter a mama de volta foi significativamente reduzida. A mudança de cenário começou a acontecer em dezembro 2010, quando um grupo de pacientes protestou, em frente ao Hran (Hospital Regional da Asa Norte), por causa demora de reconstruir a mama. O setor de Ações Humanitárias da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) se solidarizou com a causa e, em parceria com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, criou um projeto piloto de um mutirão para reconstruir a mama dessas mulheres mastectomizadas há anos, algumas há mais de uma década.
A capital foi a primeira cidade a participar. Na ocasião, 61 mulheres foram operadas em apenas um dia. Algumas se submeteram à reconstrução do volume do seio, outras deram continuidade ao tratamento interrompido e recuperaram mamilo e aréola. “Reunimos 110 cirurgiões plásticos voluntários, que depois se comprometeram a acompanhar a recuperação de cada paciente”, conta o médico Luciano Chaves, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e coordenador nacional das ações humanitárias da SBCP.

A ideia se espalhou pelo país e, nesses dois últimos anos, 18 capitais seguiram o exemplo e organizaram o mutirão em parceria com SBCP. Em Brasília, já somam quatro, e o próximo está previsto para o próximo mês. “Esse mutirão contemplará as pacientes de primeiro tempo (a primeira etapa da reconstrução) que não foram operadas nas cirurgias rotineiras do mês de maio”, avisa Marcelo Gêa, coordenador de cirurgia plástica da Secretaria de Saúde do DF.

Com isso, o número de mulheres que aguardavam a chance de recuperar as antigas formas por uma cirurgia no sistema público de saúde do Distrito Federal caiu de 200 para 77, sendo 42 pacientes do primeiro tempo cirúrgico (aquelas que ainda estão sem a mama e vão se submeter à primeira cirurgia para recuperar o cone mamário). As outras 35 estão em processo de conclusão do tratamento, que inclui mais duas ou três etapas (simetrização, reconstrução de aréola e do mamilo).

Segundo o cirurgião plástico Marcelo Gêa, atualmente são feitas de quatro a cinco cirurgias semanais no Hran. Ele não nega que, anos atrás, muitas vezes, as cirurgias tiveram de ser adiadas por falta de médico ou até mesmo pela escassez de materiais simples, como linha. Mas isso faz parte do passado, garante. “Nos últimos três anos, não faltou próteses ou expansor, por exemplo.”
Além disso, a equipe de mastologistas da rede pública de saúde foi ampliada, o que aumenta as chances de diagnóstico precoce e retirada do tumor de maneira menos radical. Atualmente, são oito hospitais no DF habilitados a fazer o atendimento e a retirada da mama, incluindo Sobradinho, Santa Maria, Gama e Samambaia.

A reconstrução, outrora feita exclusivamente no Hran, agora também será ampliada para os hospitais de Santa Maria e Sobradinho, onde antes apenas se retirava o tumor. A proposta é que seja feita ao menos uma cirurgia de reconstrução diariamente nesses três hospitais. A partir do segundo semestre, esse mesmo procedimento também poderá ser feito no Hospital de Base e no de Ceilândia. “Realizamos, na última terça-feira, a primeira reconstrução mamária imediata do novo programa, que será iniciado neste mês de maio nesses três hospitais. Trata-se de uma paciente de 56 anos com câncer na mama esquerda”, conta Marcelo Gêa.

Apesar das boas notícias na capital, a realidade de reconstrução de mama ainda amedronta muitas mulheres. “A SBPC reforça que a reconstrução é parte integrante do tratamento de câncer. Mas o direito ao procedimento é uma luta de muitos anos”, relembra o cirurgião plástico Luciano Chaves. Se no sistema público ainda há ajustes a serem feitos, os planos de saúde estão longe de oferecer as condições ideais. “Muitos autorizam a mastectomia, mas dificultam a reconstrução ou autorizam a reconstrução, mas não a prótese ou a simetrização. Eles entendem que a simetrização contralateral (da outra mama) é estética”, lamenta o médico.

Recuperar a mama está longe de ser um desejo puramente estético. A mastectomia abala a saúde emocional das mulheres, que, muitas vezes, se deprimem diante da nova imagem. A discussão é longa, o direito é adquirido há tempos. Difícil é colocá-lo em prática. Em 1997, uma resolução do Conselho Federal de Medicina deixava claro que “os procedimentos médicos de retirada total ou parcial da mama, para tratamento das enfermidades específicas, resultam em deformidades que trazem mal-estar físico, psíquico e social para suas portadoras”. Assim, ficava decidido que a reconstrução mamária é parte do tratamento do câncer que tenha a indicação da mastectomia, assim como “os procedimentos na mama contralateral e as reconstruções do complexo aréolo-mamilar”, concluiu o documento.

Dois anos depois, a Lei n° 9.797, de 1999, considerava obrigatória “a cirurgia plástica reparadora da mama pela rede de unidades integrantes do Sistema Único de Saúde nos casos de mutilação decorrentes de tratamento de câncer”. Mas a longa espera exigiu uma mudança na lei, que determina agora que a reconstrução, nos casos indicados, deve ser imediata.
Há casos, porém, em que a paciente precisa terminar a quimioterapia e a radioterapia, que pode queimar a pele e desperdiçar o retalho, antes da reconstrução. “As condições clínicas da paciente também são um fator impeditivo da reconstrução imediata. Mulheres fumantes, cirurgias prévias no abdômen, diabetes, hipertensão são contraindicações médicas para o procedimento”, alerta Maira Caleffi, presidente da Femama.

A Revista remonta essa luta para ter de volta a saúde e a forma física pela história de quatro mulheres: Flávia Flores, Joana Jeker, Ivoneide do Nascimento e Cecília Souza têm idades e condições sociais distintas. Em comum, receberam a notícia de que o tratamento do tumor na mama exigia a retirada de uma parte do próprio corpo. Flávia nem se viu sem as mamas. Joana transformou a própria dor em luta. Ivoneide e Cecília passaram mais de uma década sem os peitos e agora tiveram a chance de reconstruí-los. Ainda não estão prontos, mas a felicidade é de quem já não se enxerga como apenas parte de si mesma.

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A NOTÍCIA

O câncer de mama não é um mal raro. Cerca de 50 mil mulheres, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca), recebem o diagnóstico da doença todos os anos. Dessas, 12 mil não têm chance de se tratar e morrem. Outras 38 mil sobrevivem depois de um tratamento eficiente, que inclui a retirada da mama. Receber a notícia de que o corpo será mutilado abala o emocional de quem já está fragilizada pelo fantasma da doença.
Com medo de que a cura implique a perda de um ou dos dois peitos, muitas mulheres evitam a pior notícia. “O medo de sofrerem a mutilação provocada pelo câncer leva muitas mulheres a evitar a procura por ajuda. Isso atrapalha o diagnóstico”, alerta Maira Caleffi, presidente da Femama.
Cada uma reage à sua maneira. Coordenadora de equipe de voluntários da Rede Feminina de Combate ao Câncer (RFCC), que reúne no Hospital de Base um grupo que oferece apoio emocional e até material aos pacientes com câncer, Vera Lúcia Bezerra comenta que não raro vê o desespero de alguma mulher ao ser avisada que sua cura depende da retirada da mama. “Algumas até dizem que não vão operar”, conta. |

Os médicos têm papel fundamental nesse esclarecimento. O mastologista Alfredo Barros, coordenador do Núcleo de Mastologia do Ambulatório de Filantropia Hospital Sírio-Libanês, reforça que antes da mastectomia, a paciente precisa passar por um aconselhamento. Mostrar as soluções de reconstrução e os avanços das técnicas pode tranquilizar quem vai passar pelo tratamento. “Muitas pacientes têm medo de fazer a mastectomia, mas depois que você mostra a elas que há chances de reconstruí-la, ela dificilmente não aceita retirar”, comenta.
A bela Flávia Flores chorou. Diz que “não queria sair da cama por pelo menos 10 dias”, quando descobriu que o carocinho que carregava no peito não era tão inofensivo quanto os médicos disseram inicialmente. Ela descobriu a presença do inimigo quando foi trocar a prótese de silicone que deixava os seios mais bonitos. Os especialistas a acalmaram. “Não deveria ser nada demais”, comentaram. Mas era. O câncer que Flávia tinha era agressivo e exigia agilidade no tratamento. De quando descobriu, em outubro do ano passado, até o mês seguinte, quando fez a mastectomia, o tumor de 2cm encorpou e chegou aos 5cm de diâmetro. Pela velocidade do crescimento, era melhor prevenir e retirar as duas mamas.

Ivoneide também foi pega de surpresa. A dona de casa foi avisada que retiraria apenas um quadrante da mama esquerda, mas quando a biópsia revelou oito nódulos malignos entre os nove retirados, o procedimento mudou: a mama, em sua totalidade, deveria ser removida. “Eu não esperava por aquilo, não queria aceitar. Para mim, eu estava curada com a retirada dos caroços”, conta. Ao relembrar a história, ela esboça a palavra “arrancar”, ao se referir ao que fariam com sua mama. Desiste, porém. Troca por outra para definir o procedimento da mastectomia. No fundo, assim como ela, muitas mulheres sentem que uma parte do corpo lhes foi realmente arrancada. “Eu não queria fazer, até que minha filha, na época com 6 anos, me perguntou: ‘Não é melhor perder o peito do que a vida?’”
Cecília também chorou. Mas sabia que não podia se render ao medo e à vaidade. Na época, trabalhava na casa de uma patroa “boa demais”. Eles contrataram uma psicóloga para que aceitasse a doença e suas consequências. “Uma amiga que não quis tirar o peito acabou morrendo”, conta. O jeito foi se conformar e enfrentar bravamente a cirurgia.

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A MASTECTOMIA

Quanto mais cedo for feito o diagnóstico do câncer, maior será a chance de preservar a mama e menor a de mutilação. Se o câncer for descoberto cedo, menos mastectomias serão necessárias. Coordenador do Núcleo de Mastologia do Ambulatório de Filantropia Hospital Sírio-Libanês, Alfredo Barros explica que tumores acima de 3cm de diâmetro já são indicação de uma mastectomia. Por isso, se o problema for identificado logo que surge, será possível recorrer a métodos menos radicais. “As técnicas de retirada do câncer de mama evoluíram muito, os materiais estão melhores, a cirurgias, menos mutiladoras, permitindo a preservação da pele e melhorando muito o resultado estético da reconstrução”, reforça o oncologista João Nunes, do Centro de Câncer de Brasília (Cettro).

Basicamente são três as possibilidades de retirada do tumor: a ressecção segmentar ou quadrantectomia, que retira apenas um quarto da mama; a adenectomia mamária, que retira todo o corpo glandular, porém preservando na íntegra a pele, a aréola e o mamilo, o que facilita a reconstrução; e a mastectomia, que retira todo o tecido mamário.

Cada caso, porém, exige um procedimento a ser considerado pelo mastologista e pelo oncologista, mas, em geral, a agressividade e o tamanho do tumor, os antecedentes genéticos, a idade da paciente, os casos de câncer na família são fatores que interferirão na decisão de se retirar parte ou totalidade da mama. No caso de Flávia Flores, a agressividade do tumor não deixou escolha à equipe médica. Ela retirou as duas mamas: a doente e a que poderia abrigar um novo câncer.
Joana Jeker também não teve escolha. Como são muitos casos de câncer de mama entre as mulheres da família e por ter apenas 30 anos na época do diagnóstico, a solução foi a mastectomia radical. Assim como ela, Ivoneide e Cecília também perderam apenas uma mama. A outra passou a ser monitorada em exames periódicos para saber se não há sinais da doença.


AS CIRURGIAS RECONSTRUTORAS

“Quando você se vê sem cabelo e sem a mama, você se sente um monstro”, define, sem meias palavras, a administradora Joana Jeker. Ela não esconde que “não se reconhecia” sem o longo cabelo e sem um dos peitos. Como ela, a maioria das mulheres que são obrigadas a retirar a mama precisa lidar como os próprios medos e preconceitos.
Joana só conseguiu começar a reconstrução em 2009, dois anos após a mastectomia. Um acidente de moto atrasou os planos da moça a retomar a rotina e recuperar a autoestima. Ela fez duas etapas pela Secretaria de Saúde do DF, até que o médico que deveria concluir a reconstrução se recusou a continuar operando por falta de estrutura dos hospitais. Foi quando Joana transformou a própria dor em causa social. Foi dela a ideia em reunir as mulheres mastectomizadas, como ela, em frente ao Hran para pedir pelo direito de ter a mama reconstruída. Algumas estavam sem a mama há mais de uma década.

A ação de Joana ganhou os jornais e a televisão. Foi assim que começou a ter os mutirões em Brasília, e muitas mulheres que já haviam perdido a esperança de serem operadas entraram novamente na fila. No mesmo ano, Joana fundou a ONG Recomeçar para lutar pelos direitos das mulheres com câncer de mama e hoje orgulha-se de ter sido uma das responsáveis por mudar a vida de tantas pacientes, como é o caso de Cecília Souza, de 66 anos.
Essa dona de casa se acostumou com a realidade de não ter uma das mamas. Foram 18 anos convivendo com a nova silhueta. “Naquela época, nem tinha como fazer a reconstrução. Ninguém falava disso”, comenta Cecília. Ela conta que pouco se importava mais em usar diariamente a prótese externa de silicone, que preenche o sutiã e engana a vaidade. Essa prótese é distribuída no Hospital de Base e dá às mulheres o alento de ao menos não parecessem visivelmente disformes. O grupo de voluntárias da Rede Feminina de Combate ao Câncer desde 2006 também distribui mamas de espuma com enchimento de alpiste. Para quem perde uma parte do corpo, a substituta sintética pode amenizar a dor. Por iniciativa de uma das voluntárias, que começou a criar próteses de pano para uso próprio, hoje a Rede tem até oficina para a confecção das mamas de espuma. De lá para cá, foram 5 mil unidades distribuídas para mulheres que aguardavam a reconstrução definitiva. “Algumas nem quiseram reconstruir e preferiram usar só a prótese”, conta Maria Thereza Falcão, presidente da rede.

Para Cecília a resignação diante da própria sorte era consolo suficiente. Já nem lembrava como era o corpo antes da doença. Até que lhe falaram que teria o mutirão de reconstrução nos hospitais do DF. Os filhos acharam bobagem correr o risco. Solteira, não seria nessa altura da vida que a forma física faria diferença, consideraram. “Mas eu fui a uma reunião, vi aquela mulherada tão animada em ter um peito novo, que também quis um”, brinca. A condição que ela mesma se colocou foi de que a irmã mais nova decidiria: se ela apoiasse, faria a cirurgia. E Francisca Souza, 62 anos, incentivou. “Falei para ela: ‘Isso não é luxo, não é vaidade, é autoestima da mulher. Faz para você se sentir mais mulher’”, disse, sabiamente.
Cecília fez a primeira etapa do procedimento. A gordura da barriga se transformou em um novo peito, sem mamilo, com cicatriz, mais alto e mais firme que o outro. Não importa. Ela levanta a blusa. Mostra essa parte do corpo remodelada, devolvida pelas técnicas da medicina. Agora, não precisa mais usar um seio falso. O mesmo que a aposentada Ivoneide Nascimento usou por 13 anos para substituir a mama que adoeceu. “Quando fui atrás da reconstrução, me disseram que demorava pelo menos cinco anos na fila. Nunca tirei meu nome da lista, mas nunca me chamaram”, conta.


O tempo também fez Ivoneide se acostumar com o que via diante do espelho. “Eu não me importava de não ter uma mama. Meu marido também nunca reclamou”, lembra. Também não teria escolha. Como nunca tinha conseguido fazer a reconstrução pelo sistema público de saúde, melhor seria se conformar. Uma cirurgia dessas em consultório particular custa em média R$ 15 mil, cada etapa. A reconstrução completa exige, no mínimo, três cirurgias, com intervalos de pelo menos seis meses entre cada uma, para finalizar e deixar a mama o mais próxima da verdadeira.

Há sete meses, porém, Ivoneide se redescobriu, de uma forma que nem mesmo imaginaria. Convencida por uma amiga, inscreveu-se no mutirão e foi submetida à cirurgia da primeira etapa da reconstrução. O marido não queria. Tinha medo de complicações, de que o procedimento pudesse, de algum modo, fazê-lo relembrá-lo o gosto amargo da doença. Mas não adiantou argumentar. Ivoneide decidiu fazer. E fez.

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A NOVA IMAGEM

Ganhar um peito reconstruído pode ajudar inclusive no resultado do tratamento. “O pós-operatório de quem faz a reconstrução imediata é muito melhor, o lado emocional é muito importante para o sucesso do tratamento”, afirma o mastologista Alfredo Barros, do Hospital Sírio-Libanês.

Poucas são as que têm essa sorte. Flávia Flores, 35 anos, por exemplo, não se viu sem os dois peitos. Ela se submeteu à técnica que usa o expansor definitivo (veja infografia na página 30) e, assim que acabou a mastectomia, teve a mama imediatamente reconstruída. Ainda assim, não se livrou do peso de passar por um drama que envolve o tratamento de câncer de mama. O namorado que tinha nunca mais deu notícias. “Depois da cirurgia, nunca mais me atendeu ou respondeu minhas mensagens. Só pode ser por causa da doença”, imagina a moça, que já superou a separação e até tem um novo amor.
A pele da mama ainda está sendo expandida. Dói, tem uma cicatriz que vai “do mamilo até debaixo do braço”. Vaidosa, a moça de olhos verdes que sempre trabalhou com moda não se conformava com a imagem abatida que começou a ver refletida no espelho. A forte quimioterapia levou embora os cabelos e fez cair os cílios e as sobrancelhas. “Comecei a pesquisar na internet dicas de como se arrumar nessa fase e não encontrei nada”, comenta. Decidiu, então, fazer ela mesma.

Flávia criou uma página no Facebook, Quimioterapia e Beleza, para dividir com os amigos sua rotina de tratamento e como se arrumava para continuar linda nessa fase. Ensina a preencher a sobrancelha com maquiagem, a colocar o cílios postiços, a amarrar o lenço de forma inusitada ou até mesmo a explorar essa fase careca com muito estilo. Logo, outras mulheres, de todos os cantos do país, que vivem ou viveram o mesmo drama, começaram a se identificar com Flávia, que tem previsão de alta da químio só em julho do próximo ano. São mais de um milhão de visualizações por mês da página que mostra uma forma de lidar com a recuperação do câncer mais cheia de autoestima. “Muitas me escrevem agradecidas, dizendo que mudei a vida delas, da família delas, que veem um exemplo na minha força. Todo esse amor que recebo reflete positivamente no meu tratamento”, define.

Ficar sem a mama abala a autoconfiança e compromete as relações pessoais. Vera Lúcia Bezerra, coordenadora de equipe de voluntários da Rede Feminina de Combate ao Câncer (RFCC), comenta que não raro as mulheres que retiram a mama no Hospital de Base relatam histórias de abandono e separação depois da cirurgia. Dados da pesquisa realizada pela SBCP, em 2011, durante o primeiro mutirão de reconstrução em Brasília, apontam que 42% das mulheres mastectomizadas são solteiras e 31% se separam após o procedimento. A fragilidade da saúde se reflete no emocional. “Cerca de 63% delas ficam sem apoio psicológico ou da família”, lamenta Luciano Chaves, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e coordenador nacional das ações humanitárias da SBCP.

A reconstrução é a chance de fazer as pazes com a própria imagem. Dona Cecília Souza está ansiosa para terminar sua reconstrução. “Se eu soubesse que ia demorar tanto…”, lamenta. Já tem quase um ano que espera ser chamada para a etapa de simetrização. Brinca que, quando levantar o outro peito, terá corpo de moça jovem. Ela, que dizia ter se acostumado com a imagem mutilada, anda rindo à toa com o seio reconstruído pela metade. “Estou uma felicidade só”, define com simplicidade.

Depois de muitos anos de luta e de passar por três cirurgias, Joana Jeker é outra que se sente realizada. A última etapa da reconstrução da mama, retirada em 2007, acabou em junho de 2010, quando foi feita a aréola e o bico. “Mas eu considero que terminei em dezembro passado, quando fiz a pigmentação da aréola e do bico com a tatuagem”, explica. Agora sim, ela não tem vergonha do próprio corpo. Muito magra, não tinha pele suficiente para acomodar a prótese. Teve de engordar para retirar um retalho das costas e levá-lo para o peito. A cicatriz é grande. Para disfarçar e apagar a lembrança da doença, desenhou sobre ela um ramo de flores. É a beleza que apaga a dor. “Hoje, me olho no espelho e não lembro mais do câncer. Antes, escondia a cicatriz, agora exibo o decote.”

Fonte: Correio Braziliense

Imagem: Imgsapp.sites.correioweb.com