Anvisa e dengue
02/04/2013
"Anvisa e dengue
Em 1901, os hospitais na França cuidavam de crianças atacadas pela difteria, que aguardavam a morte inexorável. Behring e Ehrlich descobriram que o soro de animais inoculados com a bactéria que causa a difteria neutralizava os efeitos da toxina que era a causa da morte
Isaias Raw*
Em 1882, Louis Pasteur fez descobertas fundamentais para o desenvolvimento de vacinas e teve que lutar com professores e médicos que não acreditavam em micróbios e que dominavam a Academia Francesa de Medicina. Descobriu como produzir uma vacina contra a raiva e tratou uma criança que havia sido mordida por um cão raivoso. Aplicou a vacina e salvou a criança e outros que haviam sido atacados.
Em 1901, os hospitais na França cuidavam de crianças atacadas pela difteria, que aguardavam a morte inexorável. Behring e Ehrlich descobriram que o soro de animais inoculados com a bactéria que causa a difteria neutralizava os efeitos da toxina que era a causa da morte. Na calada da noite, Behring entrou na enfermaria e administrou soro às crianças, que foram salvas. Ganharam o Prêmio Nobel de Medicina.
Em 1975, o Ministério da Saúde tentou esconder a epidemia de meningite, que atingia 11 mil pessoas por dia, para as quais não havia médicos, camas nos hospitais nem forma de prevenção. Finalmente, apelaram para os laboratórios internacionais que produziam vacinas. A única resposta veio de Charles Merieux, cujo pai trabalhou com Pasteur. Merieux comprou um trailer e produziu a vacina que acabou com a epidemia. Não havia uma Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que proibisse a produção, exigindo detalhes e ensaios clínicos para registrar o produto, o que demoraria alguns anos. Era preciso ousadia e responsabilidade social, não formalismo e burocracia!
Ante a gravidade da dengue, o Butantan foi buscar no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH) uma vacina-candidata, que protegia macacos Rhesus com apenas uma dose. O Butantan, num laboratório que vinha produzindo há 20 anos a vacina da raiva, produziu as primeiras doses da vacina de dengue para os quatro sorotipos existentes.
Um cálculo do Pediatric Dengue Vaccine Iniciative demonstrou que seria possível produzir a vacina no Butantan por apenas US$ 0,20 e que o rendimento era tão grande que poderíamos imaginar extinguir, em poucos anos, os vírus da dengue no continente. O NIH realizou ensaios em voluntários norte-americanos (nos EUA não existe a dengue), demonstrando a eficácia e segurança da vacina.
Levamos à Anvisa, em 2011, pesquisadores do NIH e da Universidade John Hopkins e o famoso Donald Francis (que descobriu a Aids em San Francisco, desafiou publicamente os produtores de hemoderivados que transmitiam hepatite B e, no meio da África, acabou com a epidemia mortal do vírus da ebola). Acertamos o início do ensaio que documentaria a eficácia da vacina produzida no Butantan.
Continuamos aguardando decisão de um grupo de funcionários que jamais desenvolveu ou fez uma vacina e continua buscando pretextos para protelar o início do ensaio, enquanto, em apenas 60 dias, 204.650 foram infectados em 2013, dos quais, mais de 300 tiveram que ser internados — quatro vezes mais do que todo o ano de 2012.
Sem atender o Butantan, autorizaram a uma multinacional que testasse sua vacina contra a dengue no Brasil, que exigia três doses e 150 vezes mais vacina do que a que vamos produzir. Correram para impedir que o Butantan produzisse. Tiveram o azar que a vacina, que custaria cerca de 100 vezes mais, não protegeria contra os quatro tipos de vírus da dengue.
O mesmo ocorreu com o esforço do Butantan de produzir a vacina contra rotavírus que mata crianças, o que permitiu que uma importada fosse aplicada em recém-nascidos. Um estudo do ministério mostra que essa vacina protegeu contra alguns sorotipos de rotavírus, sobrando dois mais prevalentes (G2-G3), que continuam infectando e matando os bebês, a um custo anual de cerca de US$ 75 milhões. Não bastasse a irresponsabilidade da Anvisa, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) ainda dificulta a aprovação de projetos de institutos públicos, como o Butantan.
Continuamos a ser um país colônia, que compra vacinas, como xaropes de refrescos: coloca água e rotula como made in Brasil! Uma medida provisória aprovada pelo Congresso permite importar vacinas a granel, pois não acredita que é possível inovar, desenvolver tecnologia e produzir no Brasil! Desde 1985, o Butantan produziu com tecnologia própria cerca de 900 milhões de doses da vacina de coqueluche, difteria, tétano e hepatite B, que foram administrados a todos os recém-nascidos, com eficácia e segurança.
Finalmente, o ministro Padilha, para atender a indústria farmacêutica nacional, enfrentou a Anvisa e impôs uma mudança radical. A dengue se tornou uma epidemia e esperamos que o ministro acione a Anvisa e a Conep para autorizar o início do ensaio. Dia 9 se reúne em Brasília o Pediatric Dengue Vaccine Initiative, uma ótima oportunidade para o ministro anunciar que o Butantan, maior centro de inovação de vacinas do continente, está se preparando para iniciar o ensaio."
*Professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, foi professor na Harvard School of Public Health e na City University de Nova York, além de diretor do Instituto Butantan."
Fonte: Interjornal.com
Imagem: Alagoas24horas.com