A influência da Angelina
19/05/2013
"A influência da Angelina
Controversa A atriz americana Angelina Jolie. Sua decisão de retirar os seios, aos 37 anos, teve enorme repercussão
Marcela Buscato e Martha Mendonça
Angelina Jolie não é uma mulher de meios-termos. Nunca foi. Na adolescência, pintava os cabelos de roxo, colecionava facas e gostava de se cortar. Nessa época, as tatuagens começaram a se espalhar por seu corpo. Em 1996, aos 21 anos, casou-se com o ator britânico Jonny Lee Miller usando uma camiseta branca, em que o nome de Miller estava escrito com o sangue dela. Não deu certo. Em seu segundo casamento, com o também ator Billy Bob Thornton, usava um frasco com o sangue dele pendurado no pesçoco. Não funcionou. O sucesso no cinema, que deslumbra e entorpece as personalidades, não teve esse efeito nela. Angelina continuou Angelina - e algo mais. Rompeu publicamente com o pai, o ator Jon Voight, que disse que ela tinha "problemas mentais", e envolveu-se com trabalho humanitário na África e no Paquistão. Terminou embaixadora das Nações Unidas. Ao mesmo tempo, adotou três crianças de três países diferentes - Camboja, Vietnã e Etiópia - e teve outras três com o ator Brad Pitt, seu atual marido, provavelmente o homem mais desejado do mundo. Linda e famosa, também provavelmente a mulher mais desejada do mundo, Angelina transformou sua vida num manifesto - foi eleita pela revista Forbes em 2009 como a celebridade mais poderosa do mundo. Em 20 anos de vida pública, conseguiu, nas palavras imortais de Steve Jobs, deixar uma marca no Universo. Na semana passada, Angelina foi além. Num artigo escrito para o jornal americano The New York Times, revelou ter se submetido há alguns meses a uma cirurgia conhecida tecnicamente como mastectomia preventiva dupla. Por trás do nome complicado, havia uma revelação desconcertante: o maior símbolo sexual do planeta escolhera tirar os seios perfeitos para diminuir suas chances de desenvolver câncer de mama. Aos 37 anos. "Posso dizer aos meus filhos que eles não precisam temer me perder para a doença", escreveu. Anunciar publicamente sua luta contra o risco de câncer - na tentativa de influenciar as decisões de outras pessoas sobre sua própria saúde - é seu gesto mais pretensioso. E controverso. "Quero encorajar cada mulher, especialmente as com casos de câncer de mama e ovário na família, a procurar informações e especialistas que possam ajudar a tomar decisões."
Famosa como é, Angelina poderia ter simplesmente deixado que o mundo soubesse o que ela fez. Sua decisão, mesmo silenciosa, teria uma influência tremenda sobre outras mulheres. Ao agir como agiu, ao vocalizar sua escolha, se transformou, ainda que involuntariamente, em garota-propaganda de uma forma radical de medicina preventiva que não serve para todo mundo. Em poucas horas, seu texto varreu o mundo, dominou as redes sociais e fez as mulheres perguntar a seus médicos se elas também corriam risco. Elas foram atrás de informações, algo saudável. Mas um número elevado se alarmou perigosamente. A decisão de Angelina pode fazer todo o sentido do ponto de vista pessoal. Ao ser anunciada como fórmula de sobrevivência num alto-falante global, pode surtir efeitos perversos. No Brasil, o "efeito Angelina" fez com que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, viesse a público pedir cautela. "Já surgiram vários estudos que mostraram um número grande de mastectomias realizadas em pacientes em que depois se afastou o risco", disse.
A indicação clínica para a retirada preventiva das mamas é bastante precisa. E restrita. Só é sugerida para mulheres que tenham determinadas mutações genéticas, passadas de geração em geração na família, que predispõem à doença. Mesmo que elas descubram carregar essas alterações, a paciente deve analisar com seu médico se essa é a melhor opção para ela. Como os testes genéticos apontam a probabilidade, e não a certeza, de desenvolver uma doença, é perfeitamente aceitável que ela escolha usar outros métodos, menos eficazes, mas também menos radicais, para se resguardar. Nesses casos, são recomendados exames a cada seis meses, ou drogas que tentam evitar o aparecimento de tumores.
Há outro lado do "efeito Angelina". Ao assumir-se protagonista de sua decisão médica, Angelina expôs um dilema íntimo, vivido por milhões de mulheres no mundo. Só no Brasil, a cada ano, cerca de 52 mil mulheres recebem a notícia de que têm câncer de mama, o mais comum na população feminina. Angelina convive com o fantasma da doença há quase 20 anos, quando sua mãe foi diagnosticada. Marcheline Bertrand, também atriz, morreu aos 56 anos, em 2007, em decorrência da doença. Assombrada pela chance de ter o mesmo destino, Angelina se submeteu a um teste que analisa dois genes que todos carregamos nas células do corpo. Sua função normal é prevenir o crescimento celular descontrolado. Mas eles podem carregar alterações que afetam seu funcionamento adequado. Isso aumenta, nas mulheres, as chances de desenvolver câncer de mama e ovário e, nos homens, o risco de câncer de mama. Angelina descobriu que herdara a mesma mutação genética da mãe: trocas de bases químicas no gene conhecido pela sigla BRCA1. De acordo com certos estudos, elas aumentavam em 87% seu risco de ela ter câncer de mama e, em 50%, câncer de ovário. A oncologista Maria Isabel Achatz, do A.C. Camargo Câncer Center, de São Paulo, diz que outros estudos poderiam ter dado a Angelina probabilidades diferentes. "O estudo usado no caso dela é o que sugere o risco mais alto", diz.
Confrontada com essa estatística, Angelina não suportou a dúvida. Em 2 de fevereiro, deu início a uma sequência de três intervenções cirúrgicas, encerrada em 27 de abril (leia o quadro na página 82). Elas foram realizadas no Pink Lotus Breast Câncer, uma clínica em Los Angeles, nos Estados Unidos, conhecida por atender celebridades como a cantora Sheryl Crow, diagnosticada com câncer de mama em 2006. Na primeira cirurgia, os médicos fizeram uma incisão nos mamilos, para estimular a proliferação de vasos sanguíneos e reduzir o risco de ela precisar perdê-los. É um procedimento pouco comum. "Houve um excesso de zelo, porque Angelina é uma celebridade e vive de sua imagem", diz Alexandre Mendonça Munhoz, cirurgião especializado em reconstrução de mama e professor do instituto de ensino e pesquisa do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Em 16 de fevereiro, Angelina fez a cirurgia principal, para retirar as duas mamas, que pode levar até oito horas. No mesmo dia, colocou próteses temporárias, preenchidas por dez dias com soro.
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O TESTE PARA DESCOBRIR AS CHANCES DETER CÂNCER NÃO É RECOMENDADO ATODAS AS MULHERES
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Após essa segunda intervenção, a médica Kristi Funk diz ter se surpreendido com uma Angelina animada, observando, em pé, duas paredes de sua casa, cobertas com rascunhos de seu próximo projeto. "De cada seio, pendiam três drenos", escreveu Kristi no site da clínica. Em que outras circunstâncias um médico escreveria, detalhadamente, sobre os procedimentos envolvendo um paciente famoso? Em 27 de abril, Angelina passou pela cirurgia final, para colocar as próteses de silicone. "Não me sinto menos mulher", escreveu. No texto do The New York Times, deu a entender que também retirará os ovários. O procedimento é considerado, por alguns médicos, ainda mais importante, porque o câncer é de difícil detecção. A retirada dos ovários fará com que ela entre na menopausa.
Os dilemas são muitos nesses casos. Antes de considerar uma cirurgia radical como a de Angelina, é preciso descobrir se a mulher tem um risco alto de desenvolver câncer de mama. Aquelas com maior probabilidade são aquelas cujas parentes de primeiro grau (mãe, irmãs) e de segundo (avó, tias) tiveram a doença antes dos 50 anos. Esse é um indício de que mutações genéticas que favorecem o câncer são passadas de geração em geração na família. Esse câncer hereditário é menos comum. Corresponde a cerca de 10% dos casos. Mas quem tem essas alterações genéticas corre mais risco de desenvolver a doença. Se, na população feminina, cerca de 12% terão câncer de mama, entre as que herdaram mutações nocivas nos genes conhecidos pelas siglas BRCA1 e BRCA2 esse número sobe para 60%, segundo o National Câncer Institute, dos EUA.
Nos últimos anos, com o desenvolvimento dos testes genéticos, os médicos ganharam uma ferramenta importante para identificar pacientes com os genes perigosos. "Esse tipo de exame é o maior passo dado até hoje na medicina personalizada" afirma Bernardo Garicochea, coordenador de ensino e pesquisa do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês. O teste que Angelina fez foi desenvolvido pela empresa americana Myriad Genetics, em 1996. A empresa enfrenta atualmente um processo na Justiça americana, que decide se ela poderá continuar com a patente dos genes. Com o anúncio de Angelina, suas ações alcançaram seu patamar mais alto em um ano. O teste está disponível no Brasil desde 2001. Custa caro, cerca de R$ 7 mil. Não está na cobertura do Sistema Único de Saúde, e são poucos planos privados que aceitam cobri-lo. Os médicos recomendam que mulheres com histórico na família - e somente essas façam o teste. É o caso da paranaense Kelly Cristina da Silva, de 29 anos. Há dois meses ela perdeu a mãe, de 51, para o câncer, que começou nas mamas e se espalhou para o cérebro. Os médicos sugeriram que Kelly fizesse o teste. O resultado foi positivo para a existência das mutações. Ela já está fazendo os exames pré-operatórios para retirar preventivamente as mamas. "Tenho a chance de mudar minha história", diz.
Embora úteis, os testes genéticos são vistos com desconfiança por cientistas. Eles acreditam que os exames levam angústia e sofrimento a pessoas que não teriam com o que se preocupar, além de submetê-las a intervenções médicas delicadas, que as põem em risco desnecessariamente. Esses médicos lembram que nem todas as mulheres que carregam mutações associadas ao câncer desenvolverão a doença. "Algumas mulheres perdem os seios sem ter certeza de que morreriam por causa do câncer", afirma Gerd Gigerenzer, especialista em interpretação de riscos do Instituto Max Planck, na Alemanha. Um estudo americano, citado por Gigerenzer, compara dois grupos de mulheres com mutações genéticas e outros fatores de risco. Um grupo fez mastectomia preventiva, e outro não. Depois de 14 anos, entre as mulheres que tiraram os seios, havia uma morte para cada 100. No outro grupo, cinco mortes para cada 100. A conclusão de Gigerenzer é que a mastectomia salvou a vida de apenas 4% das mulheres. As outras sofreram à toa.
Um levantamento realizado pelo Roswell Park Câncer Institute, de Nova York, mostra que opções como a de Angelina ou Kelly Cristina são cada vez mais numerosas. Os pesquisadores analisaram o histórico de 70 mil pacientes e perceberam que as cirurgias radicais dobraram num período de 11 anos. Esses dados incluem, além de cirurgias de mulheres que ainda não tinham câncer, procedimentos feitos por pacientes que descobriram tumores numa das mamas e resolveram operar as duas totalmente. No dia a dia dos consultórios, os médicos observam um fenômeno semelhante. As mulheres têm tanto medo da doença que costumam, elas mesmas, sugerir a cirurgia. "Essa pandemia de mastectomias preventivas vai na direção contrária à evolução da medicina", afirma o ginecologista Carlos Alberto Ruiz, presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia. "A tendência é fazer procedimentos cada vez menos agressivos, para conservar a mama."
Para a maioria dos médicos, não resta muita dúvida de que, se o resultado do teste genético é positivo para as mutações, a discussão sobre a cirurgia preventiva pode ser posta na mesa. A necessidade dessa conversa delicada já está estabelecida por diretrizes de entidades internacionais, como a National Comprehensive Câncer Network, uma rede criada pelos 23 principais centros de tratamento e pesquisa de câncer nos EUA. "A retirada preventiva das mamas é o único método capaz de reduzir em até 95% os riscos de ter a doença", afirma a oncologista Maria Isabel, do A.C. Camargo. A proteção oferecida pelo procedimento não é total, porque existe a possibilidade de que algumas células com potencial para desenvolver tumores fiquem em restos de tecido mamário próximos à pele ou à parede do tórax.
Quando se olha para os números que ajudam os médicos a construir esse tipo de consenso, a decisão a tomar parece simples. Mas a mastectomia preventiva envolve riscos. Existe a possibilidade de uma infecção grave se instalar e de acontecer uma necrose - a morte dos tecidos - na região das mamas. Mesmo que tudo corra bem, o resultado estético está longe de ser comparável às cirurgias feitas para aumentar o tamanho dos seios. "Muitas mulheres têm a expectativa de que a mama reconstruída ficará igual ou ainda melhor. Isso não é verdade", afirma o cirurgião oncológico Rodrigo Michelli, do Hospital de Câncer de Barretos. É preciso retirar uma grande quantidade de tecido mamário, para diminuir a área em que tumores podem se desenvolver. Por causa disso, o formato dos seios, mesmo com as próteses de silicone, é alterado. Há perda de sensibilidade ao toque, e as mamas costumam ficar frias. Em alguns casos, o corpo das pacientes rejeita a prótese, e elas não podem fazer a reconstrução. É preciso que estejam preparadas para todas essas consequências.
"Há pacientes que nunca se recuperam psicologicamente", afirma a psicóloga Maria Fernanda Maluf. Ela passou um ano acompanhando 50 mulheres que
retiraram as mamas preventivamente após o aparecimento de um tumor. "Na sociedade em que vivemos, a mama é cultuada como um símbolo máximo de feminilidade", afirma. Por isso, a intervenção tem efeito na vida sexual, provoca insegurança e prejudica a autoimagem. Uma maneira de atenuar os impactos negativos é envolver o parceiro desde o momento em que se discute a possibilidade de fazer ou não a cirurgia. A mulher se sente mais segura, porque não teme que o marido se surpreenda negativamente com o resultado. Ele também fica ciente de todas as implicações. Angelina diz que esse foi um dos segredos para enfrentar com tranquilidade sua decisão. Pitt esteve a seu lado o tempo todo. A médica de Angelina diz que ele estava lá cada vez que ela acordava da anestesia. Na semana passada, Pitt continuou a apoiá- la em público. Disse em entrevistas que a atitude dela foi "absolutamente heroica".
Um levantamento feito com cerca de 600 mulheres nos Estados Unidos mostrou que, depois de retirar os seios, 70% das mulheres dizem viver menos preocupadas com o câncer, mas 36% não escondem que a satisfação com o corpo diminui. Algo se perde, por isso é importante ter em conta a personalidade e o estado psicológico de cada mulher. "A mastectomia preventiva é o método mais seguro para evitar o câncer, mas não quer dizer que é a decisão mais acertada para todos os casos", afirma o oncologista Sérgio Simon, diretor presidente do Grupo Brasileiro de Estudos Clínicos em Câncer de Mama. "As pacientes devem saber que existem alternativas à cirurgia preventiva." Elas precisam passar por um monitoramento rigoroso, com exames intercalados de ressonância magnética e ultrassonografia a cada seis meses. Outra opção é usar drogas que tentam inibir o crescimento de tumores, como o tamoxifeno. Elas têm efeitos colaterais e são menos eficazes que a cirurgia, mas evitam as implicações da operação. Como equilibrar essa equação é algo que cabe apenas a cada mulher, com a ajuda de seus médicos. A atitude de Angelina não pode ser generalizada. Os avanços da medicina só fazem sentido por dar, a cada um de nós, a possibilidade de escolher."
Fonte e Imagem: Cofen.com